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Aprendi inglês observando meu filho autista que entende e fala apenas assistindo YouTube.
Nunca imaginei que meu maior professor de inglês seria meu filho de cinco anos. A vida tem dessas surpresas que chegam sem aviso e mudam tudo. O Theo chegou assim, redefinindo nosso mundo com seu olhar único, suas conexões singulares e sua forma diferente de aprender.
Um canal, duas línguas e uma descoberta
Tudo começou quando percebi que o Theo ficava hipnotizado por aqueles vídeos coloridos do Blipe. Sentadinho ali, absorto, enquanto figuras dançantes e vozes animadas preenchiam a sala. No início, eu só queria um momento de paz — aqueles preciosos minutos que todo pai de criança autista conhece bem — quando finalmente conseguimos respirar enquanto eles encontram algo que acalma aquela tempestade interna.
Mas logo notei algo curioso: ele assistia ao mesmo episódio repetidamente, alternando entre português e inglês. Não era apenas uma obsessão por repetição (algo tão comum no universo do autismo), era algo mais. Quando menos esperava, flagrei o Theo respondendo em inglês a perguntas feitas pelos personagens. Fiquei de queixo caído!
"Como isso é possível?", pensei, observando aquele menininho que às vezes lutava para se comunicar no dia a dia, mas que ali, naquele momento, transitava entre dois idiomas com uma naturalidade impressionante.
Aprendendo junto: de espectador a estudante
Foi quando tive uma epifania: "Se ele consegue, por que eu não?". Comecei a sentar ao lado dele durante suas sessões de Blipe. No começo, era só para fazer companhia, mas logo virou nossa rotina sagrada. Assistíamos primeiro em português, depois em inglês.
Meu cérebro, enferrujado pelos anos e sem o superpoder de absorção que as crianças têm, trabalhava dobrado. Eu forçava a memória para lembrar o que tinha acontecido na versão em português e tentava fazer as conexões quando o inglês começava a tocar. Era como montar um quebra-cabeça diário, peça por peça.
"Dad, look!" – Theo apontava para a tela, seus olhinhos brilhando quando algo empolgante acontecia. E eu, sem perceber, comecei a responder: "Yes, I see it!"
Não foi fácil. Houve dias de frustração, quando as palavras pareciam escorregar como água entre os dedos. Dias em que eu me sentia ridículo tentando imitar a pronúncia dos apresentadores. Mas havia algo mais forte me empurrando: a conexão com meu filho. Cada palavra nova era uma ponte sendo construída entre nossos mundos.
Uma família, dois idiomas e milhares de possibilidades
A Renata, minha esposa, não demorou a perceber o que estava acontecendo. "Vocês dois estão falando inglês?", perguntou perplexa numa tarde qualquer. Logo ela também estava sentada no tapete da sala, participando da nossa academia improvisada de inglês.
Viramos um trio de estudantes peculiar. Theo, nosso professor sem saber que era, guiava o caminho com sua memória impressionante e sua capacidade de absorver pronúncias como uma esponja. Nós, os adultos supostamente "neurótipicos", tropeçávamos atrás, rindo dos próprios erros.
Aos poucos, nossa casa ganhou sotaque. Objetos comuns ganharam dois nomes. A "água" também virou "water", o "leite" também era "milk". Frases simples do cotidiano começaram a sair naturalmente em inglês. Era como se tivéssemos criado nosso próprio dialeto familiar, uma mistura divertida que só nós três entendíamos perfeitamente.
Além das paredes de casa: conquistando novos territórios
O grande teste veio quando decidi abandonar as legendas. Lembro do frio na barriga quando selecionei uma série na Netflix e, num impulso de coragem (ou loucura), escolhi o áudio original sem legendas. Renata me olhou como se eu tivesse perdido o juízo.
Os primeiros minutos foram um susto. As palavras voavam rápido demais, as gírias me confundiam, e eu quase desisti. Mas então comecei a perceber que, mesmo sem entender cada sílaba, o contexto fazia sentido. Era como olhar através de uma janela embaçada – não dava para ver com nitidez, mas dava para entender o que estava acontecendo do outro lado.
Hoje, consigo acompanhar filmes e séries sem depender de tradução. Não é perfeito – ainda me perco em diálogos muito rápidos ou sotaques muito carregados – mas a sensação de liberdade é indescritível. É como se um novo universo tivesse se aberto, cheio de histórias contadas em sua forma original.
O que meu filho me ensinou sobre aprendizado
Olhando para trás, percebo que Theo me deu muito mais que um vocabulário em inglês. Ele me ensinou sobre persistência quando o via repetir e repetir até dominar uma palavra nova. Sobre foco, quando nada no mundo conseguia tirar sua atenção daqueles vídeos. Sobre encontrar padrões e fazer conexões de maneiras que eu jamais tinha considerado.
O autismo do Theo, que muitos veem apenas como um desafio, revelou-se uma janela para um tipo diferente de inteligência. Uma que não se intimida com repetições, que encontra conforto em padrões e que absorve informações de maneiras não convencionais.
Nessa jornada inesperada, descobri que aprender não tem idade nem método fixo. Que às vezes nossos maiores professores têm apenas cinco anos e não sabem que estão ensinando. Que a linguagem vai muito além das palavras – está nos olhares cúmplices, nas risadas compartilhadas, nos momentos silenciosos de compreensão mútua.
Um caminho sem fim
Ainda tropeçamos nas palavras, eu e Renata. Ainda precisamos de legendas para filmes com muito jargão técnico. Ainda ficamos perdidos em conversas muito rápidas. Mas o inglês deixou de ser aquele idioma intimidador que parecia reservado para os outros – os que tiveram oportunidade de estudar em escolas caras ou viajar para fora.
Virou nossa conquista diária, construída no chão da sala, entre episódios do Blipe e risadas. Virou um elo a mais que nos une como família. Virou prova de que, mesmo nas circunstâncias mais inesperadas, podemos encontrar caminhos para crescer.
Quando vejo Theo hoje, conversando em inglês com seus brinquedos ou respondendo a vídeos como se conversasse com velhos amigos, sinto um misto de orgulho e gratidão. Orgulho do menino incrível que ele é, enfrentando o mundo à sua maneira. E gratidão por ele ter me lembrado que nunca é tarde para aprender, que os melhores professores são aqueles que ensinam sem saber que estão ensinando, e que às vezes precisamos apenas observar o mundo através de olhos diferentes para descobrir novas possibilidades.
Nosso vocabulário ainda cresce a cada dia. Nossa pronúncia ainda tem muito sotaque. Mas já não importa tanto. O que vale mesmo é que, nesse processo de aprender juntos, descobrimos uma nova forma de nos conectar. E isso, nenhum curso formal de inglês jamais poderia ensinar.
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