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E Se Fosse Hoje? Em 1315 Crise Climática Acabou Com a Europa.
Ontem fui deitar com a cabeça fervilhando. Sabe quando uma ideia gruda em você e não solta mais? Pois é. Estava folheando um livro de história medieval quando tropecei naquele período sombrio de 1315, quando chuvas intermináveis afogaram as colheitas europeias e empurraram um continente inteiro para a fome. A Grande Fome. Um nome tão simples para algo tão devastador.
E então o pensamento me atingiu como um soco no estômago: e se acontecesse hoje?
O Passado Que Não Queria Se Repetir
Fechei os olhos e quase pude ouvir o tamborilar daquela chuva medieval que não dava trégua. Por seis verões seguidos, os campos encharcados apodreceram antes que qualquer semente pudesse virar alimento. As pessoas comeram os cachorros, depois os ratos, depois... bem, melhor nem dizer. Um terço da população europeia se foi – não de uma vez só, mas aos poucos, num definhar coletivo que durou anos.
A Renata sempre diz que sou dramático demais quando falo dessas coisas durante nossa primeira alimentação matinal. "Vai estragar o sabor das frutas", ela brinca, enquanto corta o mamão que compramos na feira. Mas desta vez, quando mencionei o assunto, ela parou a faca no ar.
"Acho que seria muito pior", ela disse, surpreendendo-me. "Pensa bem... não sabemos mais produzir nossa própria comida."
Os Novos Vulneráveis: Uma Sociedade de Cristal
Tem razão a Renata. Em 1315, praticamente todo mundo sabia plantar algo, caçar ou pelo menos identificar plantas comestíveis na floresta. Hoje? Somos especialistas em abrir aplicativos de delivery.
Nossa sociedade hiperespecializada funciona como um relógio suíço – impressionante quando todas as engrenagens estão no lugar, mas inútil quando uma única peça falha. O sistema de abastecimento moderno é um milagre logístico que depende de combustíveis, estradas desobstruídas e uma cadeia de refrigeração ininterrupta.
Uma semana de chuvas torrenciais bloqueando estradas, e os supermercados esvaziam. Duas semanas, e as pessoas começam a perceber que não dá para comer dinheiro digital.
O Brasil na Linha de Frente: Vulnerável ou Preparado?
"Mas aqui é diferente da Europa medieval, não é?" perguntou Renata enquanto regava as plantas da nossa minúscula horta na varanda – três vasinhos de manjericão e uma cebolinha teimosa que insiste em sobreviver apesar do meu histórico de jardinagem trágico.
O Brasil tem terra fértil, água abundante e produção agrícola diversificada. Teoricamente, estaríamos melhor posicionados. Mas a realidade é mais complicada.
Nossa agricultura de exportação substituiu a diversidade por monoculturas. Soja, cana, laranja – enormes extensões do mesmo cultivo, vulneráveis às mesmas pragas, às mesmas mudanças climáticas. O pequeno agricultor, que tradicionalmente alimentava o mercado interno com variedade, está em extinção.
E então tem o calor. Este verão passei mais tempo colado ao ventilador do que gostaria de admitir. Ondas de calor que antes duravam dias agora se estendem por semanas. As noites não esfriam o suficiente para dar alívio.
"Lembra daquela reportagem sobre os 49°C em Araçuaí?" comentei com Renata. "As galinhas estavam morrendo nos quintais, literalmente cozinhando em pé."
A Matemática Cruel da Fome
A diferença entre 1315 e hoje está na matemática. Naquela época, a Europa tinha talvez 75 milhões de pessoas. Hoje, só o Brasil tem quase três vezes isso. O mundo tem quase 8 bilhões.
Quando a comida acaba para 8 bilhões de pessoas, não existe floresta suficiente para forragear, não existem animais silvestres suficientes para caçar. Existe apenas... desespero multiplicado.
Os países mais pobres sentiriam primeiro – já sentem, na verdade. Quando visitei o Nordeste no ano passado, vi reservatórios que pareciam cicatrizes na terra, rachados e vazios. Vi plantações abandonadas, o solo duro como concreto.
Mas logo chegaria aos "países desenvolvidos" também. A Califórnia, celeiro da América, já enfrenta secas históricas. A Austrália viu suas fazendas queimarem em incêndios apocalípticos. Ninguém está imune.
Sobreviver no Novo Normal: Mais do que Estocar Enlatados
Ontem à noite, depois da conversa com Renata, peguei-me contando mentalmente nossas reservas. Temos arroz e feijão para um mês, talvez. Água filtrada para uma semana, no máximo.
"Poderíamos comprar mais enlatados," sugeri enquanto escovávamos os dentes lado a lado.
Renata me olhou pelo espelho, com aquela expressão que me lembra porque me apaixonei por ela – aquela mistura de ternura e razão que me ancora quando começo a flutuar em pensamentos catastróficos.
"Amor, estocar comida é só adiar o problema. Se vamos pensar nisso a sério, precisamos de soluções comunitárias, não individuais."
Fiquei quieto, com a pasta de dente escorrendo pelo canto da boca.
"Lembra daquele grupo que está revitalizando a praça do bairro com horta urbana? Talvez devêssemos participar."
Reimaginando Comunidades para um Futuro Incerto
Acordei hoje pensando que talvez a Renata tenha razão. Os sobreviventes de 1315 não foram os que tinham mais celeiros individuais, mas comunidades que se organizaram para distribuir o pouco que tinham, que compartilharam conhecimento e recursos.
Enquanto preparo minhas frutas para a primeira alimentação do dia, olho pela janela e vejo nosso prédio, um entre centenas nesta selva de concreto. Conheço apenas três vizinhos pelo nome. Em uma crise, seríamos estranhos competindo ou aliados cooperando?
A Grande Fome medieval acabou eventualmente. A chuva parou, as sementes germinaram novamente. Mas a Europa nunca foi a mesma. As estruturas feudais se enfraqueceram, as hierarquias religiosas perderam autoridade. Da devastação, novas formas de organização social emergiram.
Talvez essa seja a lição mais importante. Não apenas como sobreviveremos, mas o que nos tornaremos no processo. Que tipo de sociedade reconstruiremos das cinzas da antiga?
Hoje vou propor à Renata irmos naquele encontro da horta comunitária. Não porque um punhado de alface e tomates nos salvará do apocalipse climático. Mas porque precisamos reaprender algo que nossos ancestrais de 1315 sabiam instintivamente: ninguém sobrevive sozinho a uma tempestade global.
E você, já pensou no que faria?
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