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Um Domingo Entre Latas: O que Aprendi Como Catador por um Dia
Você já se perguntou como é a vida de quem tira o sustento das ruas? Pois é, mesmo tendo um emprego fixo e estável, algo me cutucava por dentro. Aquela curiosidade que não deixava dormir. Foi assim que decidi transformar meu domingo de descanso em um experimento social: ser catador de latinhas por um dia.
A decisão de pisar em outro chão
Quando contei pra Renata sobre minha ideia, ela logo quis embarcar comigo nessa jornada. "Vou com você!", disse empolgada. Mas algo dentro de mim sabia que precisava fazer isso sozinho. "Essa experiência vai ser só minha, preciso sentir na pele", expliquei enquanto ela me olhava com aquela mistura de preocupação e admiração.
Saí de casa cedinho, com o sol ainda espreguiçando no horizonte. Levava apenas uma sacola grande e luvas que achei no fundo da gaveta da área de serviço. O peso no peito não era das latinhas – que ainda não tinha – mas da apreensão de como seria tratado, como me sentiria.
Mãos na latinha, olhos na sociedade
Logo nas primeiras horas, uma descoberta me pegou de surpresa: a geografia das latinhas tem tudo a ver com a geografia social da cidade. Nas áreas mais pobres, quase não encontrei nada. Zero. Nadica. Já nos bairros de classe média e nas áreas mais ricas? Era quase uma mina de alumínio a céu aberto.
"As pessoas mais pobres guardam e acumulam latinha em casa, não jogam latinha fora", percebi enquanto vasculhava uma lixeira pública no centro. Faz todo sentido: quando cada centavo importa, nada se perde. Já onde o dinheiro sobra, as latinhas viram apenas lixo descartável.
Cada latinha que eu pegava me ensinava mais sobre nossa sociedade do que qualquer livro de sociologia que já tinha lido. Eram histórias condensadas em alumínio – algumas amassadas com pressa, outras quase intactas, jogadas com displicência.
O suor que vale centavos
O sol já castigava forte quando senti as primeiras dores nas costas. Abaixar, levantar, abaixar, levantar. Um balé repetitivo que ninguém aplaude. Meus dedos, mesmo com luvas, já estavam grudentos da mistura de líquidos que escorria das sacolas de lixo.
"Quanto vale esse sacrifício?", me perguntei sentado na calçada, contando as latinhas coletadas até ali. Tinha feito as contas antes: para conseguir um salário mínimo catando latinhas, precisaria de uma montanha delas. Ali, naquele momento de pausa, a matemática cruel da sobrevivência ficou escancarada.
E não era só o esforço físico. Os olhares... ah, os olhares. Alguns de pena, outros de nojo, muitos de simples indiferença – como se eu tivesse virado parte da paisagem urbana, algo a ser contornado na calçada.
O tesouro inesperado
Entre tantas descobertas amargas, encontrei pequenas alegrias. Como o senhor de boné azul desbotado que saiu de sua padaria para me oferecer um café. "Tá quente hoje, né moço?", disse simplesmente, sem fazer alarde de sua gentileza.
Ou as três latinhas perfeitamente limpas, separadas em um saquinho na lixeira do parque, com um bilhetinho: "Para quem precisar". Engoli seco nessa hora, não pela sede, mas pela emoção de ver que ainda existem pessoas que enxergam humanidade onde muitos veem apenas o invisível.
De volta pra casa, carregado de mais que latinhas
Quando cheguei em casa, já no finalzinho da tarde, Theo, meu filho, correu até o portão. Seus olhos brilharam ao ver minha "colheita" do dia.
"Pai, posso fazer um brinquedo com elas?", perguntou, já imaginando mil possibilidades naquele monte de alumínio amassado. Renata apareceu na porta, com um sorriso aliviado ao me ver voltar.
Theo não perdeu tempo. Enquanto eu tomava um banho demorado - tentando lavar não só a sujeira, mas também parte daquela experiência que grudou na alma - ele já estava na área dos fundos, conectando latinhas com barbante, criando um instrumento musical que fazia barulho com o vento.
Lições que não cabem nas latinhas
Deitado na cama naquela noite, com o corpo moído mas a mente fervilhando, fiquei pensando no valor das coisas. No valor do trabalho. No valor das pessoas.
Um dia apenas não me faz entender completamente a vida de quem cata latinhas para sobreviver. Seria prepotência achar isso. Mas aquele domingo entre latas me ensinou mais sobre privilégio, invisibilidade social e resistência do que muitos anos vivendo na minha bolha confortável.
Hoje, quando vejo alguém vasculhando lixeiras na rua, não consigo mais simplesmente passar direto. Há um rosto, há uma história, há uma humanidade ali que merece, no mínimo, ser reconhecida. E talvez seja esse o maior valor que aquelas latinhas me trouxeram - não em reais, mas em humanidade.
E o Theo? Bem, ele guarda até hoje seu instrumento de latinhas pendurado na varanda. Um lembrete barulhento de que, às vezes, é preciso olhar para o que descartamos para entender o verdadeiro valor do que temos.
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